José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – Um modelo voltado para a previsão da ocorrência de raios durante as tempestades está sendo testado em Campinas, no Estado de São Paulo. E deverá tornar-se operacional ainda neste verão. O “SOS-Chuva app”, aplicativo gratuito desenvolvido para smartphones e tablets, que já fornece várias informações sobre o tempo, permitirá acessar também a previsão relativa aos raios.
O modelo, desenvolvido no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), é um dos resultados práticos do Projeto Temático e entendimento dos processos físicos no interior das nuvens – SOS-Chuva (Sistema de observação e previsão de tempo severo), coordenado por Luiz Augusto Toledo Machado e apoiado pela FAPESP.
Por meio de um radar polarimétrico adquirido com recursos da FAPESP e instalado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o modelo possibilitará estimar, com antecedência de meia hora, se determinado conjunto de nuvens produzirá muitos relâmpagos ou não. Com raio de cobertura de 100 quilômetros, e alta precisão nos primeiros 60 quilômetros, o radar rastreia as características das nuvens no céu de Campinas e região.
A eventual instalação de novos radares polarimétricos ou a adaptação de equipamentos já instalados possibilitarão estender a previsão a outras regiões do país. Devido à vastidão do território nacional, estima-se que, anualmente, de 60 a75 milhões de raios caiam no Brasil, causando dezenas de mortes e prejuízos da ordem de R$ 1 bilhão à sociedade.
A construção do modelo teve como ponto de partida pesquisa desenvolvida por Enrique Vieira Mattos no contexto do Projeto Temático ” associados aos principais sistemas precipitantes no Brasil: uma contribuição à modelagem da escala de nuvens e ao GPM (Medida Global de Precipitação)”. O jovem pesquisador foi beneficiado com duas bolsas da FAPESP: Doutorado e Estágio de Pesquisa no Exterior.
Uma descrição de seu estudo “” foi publicada, em dezembro de 2016, como matéria de capa do Journal of Geophysical Research.
O pesquisador foi também coautor de outro artigo publicado na Geophysical Research Letters: e, mais recentemente, é o autor principal de um trabalho em fase de revisão no Journal of Geophysical Research. Estes artigos foram produzidos em parceria com pesquisadores do Inpe, da Universidade de São Paulo (USP) e do Massachusetts Institute of Technology (MIT), dos Estados Unidos.
“O objetivo de nossa pesquisa foi entender as diferenças microfísicas entre as tempestades que apresentam descargas elétricas e as que não apresentam. A intenção era saber como diferenciar, por meio de radar meteorológico, o potencial de uma nuvem produzir ou não relâmpagos”, disse Vieira Mattos à Agência FAPESP.
Para levar adiante o estudo, os pesquisadores empregaram uma rede de sensores, capaz de detectar cada relâmpago em três dimensões. Além das latitudes e das longitudes, usualmente detectadas, foram medidas também as alturas de cada parte do relâmpago no interior da nuvem. Tais medições foram feitas no âmbito da campanha do SOS-Chuva no Vale do Paraíba, em São Paulo, coordenada pelo Inpe.
Denominada LMA (sigla derivada da expressão em língua inglesa Lightning Mapping Array), essa rede, pela primeira vez utilizada no país, foi composta por 12 sensores instalados em solo cobrindo a região metropolitana de São Paulo. Por meio da radiação eletromagnética emitida pelos relâmpagos, o equipamento determinou as três coordenadas de cada um de seus pontos ao longo das linhas de propagação.
“Nossas medições foram fruto de uma cooperação internacional, com a participação do Inpe, da Universidade de São Paulo, da Nasa [National Aeronautics and Space Administration] e da NOAA [National Oceanic and Atmospheric Administration], a agência meteorológica subordinada ao Departamento de Comércio dos Estados Unidos, que mediu as descargas elétricas”, informou Luiz Augusto Toledo Machado. Ele foi o orientador do doutorado de Vieira Mattos e também assina o artigo publicado no Journal of Geophysical Research.
Além da LMA, os pesquisadores recorreram também ao radar polarimétrico, com o objetivo de diferenciar o tipo de partícula existente no interior da nuvem, se água líquida ou gelo; a forma da partícula de gelo, se esférica, cônica ou oblonga; e a orientação da partícula, se com o eixo principal orientado horizontalmente ou verticalmente. E ainda se, em determinada região da nuvem, o gelo estava misturado com água líquida ou não.
“Com os sensores da rede LMA, conseguimos determinar quais nuvens apresentavam e quais nuvens não apresentavam relâmpagos, e em que posições das nuvens os eventuais relâmpagos ocorriam. Com o radar, analisamos separadamente cada camada das nuvens, desde a base até o topo. Isso nos possibilitou associar a ocorrência de relâmpagos com as propriedades microfísicas de cada camada. E, a partir daí, construir o modelo conceitual para a previsão de relâmpagos”, afirmou Vieira Mattos.
“Nuvens com alta probabilidade de ocorrência de relâmpagos apresentam bastante gelo de formato cônico na faixa cujas temperaturas variam de zero a 15 graus negativos. Na mesma região, apresentam também muitos cristais de gelo e água líquida super-resfriada. Essa mistura – gelo de formato cônico, cristais de gelo e água líquida super-resfriada em alta concentração –, associada à existência de correntes verticais intensas, leva a uma taxa de colisão maior entre as partículas. E, em consequência, à ionização e separação das cargas elétricas– condição necessária para que ocorram as descargas elétricas”, continuou o pesquisador.
“Além disso, próximo ao seu topo, que chamamos de fase glaciada, onde a temperatura desce abaixo de 40 graus negativos, essas grandes nuvens apresentam também um campo elétrico muito intenso, que orienta verticalmente os eixos dos cristais de gelo. E este se torna mais um marcador importante”, completou.
A combinação desses dois ingredientes permite caracterizar muito bem as nuvens produtoras de relâmpagos: possuir uma mistura expressiva de gelo de formato cônico, cristais de gelo e água líquida super-resfriada na faixa entre zero e menos 15 graus; e possuir cristais de gelo orientados verticalmente na faixa de menos 40 graus. Acompanhando, por meio de radar, as propriedades polarimétricas, isto é, a forma e orientação do gelo, é possível saber se uma nuvem tem ou não potencial para a produção de descargas elétricas. E o modelo possibilita a previsão quase imediata dos eventos, com antecedência de meia hora.
Uma segunda decorrência importante do estudo é a possibilidade de fazer o que pode ser considerado o caminho inverso: isto é, partir do inventário dos relâmpagos para caracterizar ou estimar os perfis microfísicos das nuvens. Esse inventário tornou-se agora possível, praticamente em tempo real, com o lançamento, em novembro de 2016, do satélite GOES 16 (Geostationary Operational Environmental Satellite).
“O GOES 16, chamado de antes do lançamento, é o satélite geoestacionário mais moderno já fabricado, de propriedade da NOAA, que investiu cerca de US$ 11 bilhões no projeto. Dentre seus vários sensores, há um que mede as descargas elétricas, denominado Geostationary Lightning Mapper (GLM). E fornece, a cada 15 minutos, o mapeamento de todos os relâmpagos que ocorrem nas três Américas”, detalhou Toledo Machado.
“Associando essa informação ao modelo desenvolvido a partir do trabalho de Vieira Mattos, conseguimos caracterizar os perfis das nuvens do ponto de vista de sua composição microfísica. Fazendo uma analogia, é como se a combinação do modelo com o monitoramento do GOES 16 nos fornecesse, de 15 em 15 minutos, as tomografias das nuvens, informando a composição de cada uma de suas camadas. Essa informação é muito importante para a previsão numérica, que sempre parte de um estado inicial e o faz evoluir no tempo. Estamos falando em novos modelos de previsão, muito diferentes daqueles utilizados até agora. São modelos com resolução da ordem de um quilômetro, que possibilitam a previsão do tempo na escala de bairros”, continuou o coordenador.
Previsões rápidas e precisas são uma necessidade premente no quadro da mudança climática global, em que os chamados eventos extremos tendem a ocorrer com frequência cada vez maior. O número de relâmpagos depende da intensidade da tempestade (correntes ascendentes) e composição microfísica das nuvens (tipo, tamanho, concentração etc. do gelo), podendo variar de algumas dezenas a milhares. Sistemas de nuvens de mesoescala, que se estendem horizontalmente por milhares de quilômetros quadrados, produzem relâmpagos com até 100 quilômetros de extensão em suas linhas centrais de propagação.
Noventa por cento dos relâmpagos se propagam apenas no interior das nuvens e essa propagação interna antecede as descargas no solo. Por isso também um monitoramento quase em tempo real, como o agora proporcionado pelo GOES 16, torna-se muito relevante para a tomada de decisões dos órgãos encarregados da defesa civil.