Por Karina Toledo Agência FAPESP – Foi durante o ensino médio que o biofísico alemão Erwin Neher, hoje com 69 anos, ficou fascinado com a ideia de que pelas células do corpo humano percorriam correntes elétricas. O desejo de compreender melhor esse fenômeno o direcionou para a carreira científica.
Graduou-se em Física no início dos anos 1960 pela Universidade Técnica de Munique (Technische Universität München), na Alemanha. Fez o mestrado em biofísica pela University of Wisconsin-Madison, nos Estados Unidos, e, de volta a Munique, começou a estudar a transmissão de impulsos nervosos em células de caracóis durante o seu doutorado.
O trabalho o levou ao Max Planck Institute of Psychiatry, onde na época estavam sendo investigados mecanismos sinápticos em neurônios de moluscos. Nesse período, conheceu o fisiologista Bert Sakmann, que se tornou um amigo e parceiro no desenvolvimento de um método revolucionário capaz de medir corrente elétrica em células, conhecido como patch-clamp.
Em linhas gerais, a técnica consiste em isolar um pedaço da membrana celular com uma micropipeta de vidro com um eletrodo em seu interior. A corrente que flui pela micropipeta é a mesma da membrana celular e, aplicando uma tensão conhecida, torna-se possível fazer a medição.
Neher e Sakmann conseguiram, dessa forma, provar algo debatido na ciência havia muito tempo: a existência dos canais iônicos – proteínas presentes na membrana celular que funcionam como túneis ligando o interior e o exterior da célula e permitindo a passagem de íons, como potássio, sódio e cálcio, por meio dos quais passa a corrente elétrica.
Os pesquisadores isolaram, pela primeira vez, um minúsculo canal iônico e decifraram assim a comunicação celular. Os primeiros resultados foram publicados em 1976, em um artigo na revista Nature. Após alguns anos de aperfeiçoamento, a técnica se tornou sensível o suficiente para registrar até as mais discretas alterações na corrente elétrica, o que possibilitou realizar pesquisas de eletrofisiologia com células de mamíferos.
O patch-clamp – que nunca chegou a ser patenteado – é usado até hoje em laboratórios de todo o mundo. Contribuiu para o entendimento de diversas doenças relacionadas ao mau funcionamento de canais iônicos, como fibrose cística, fibromialgia e um tipo de arritmia hereditária conhecido como síndrome de Brugada.
O método também abriu caminho para o tratamento de certos tipos de dores crônicas e da diabetes neonatal e ajudou a tornar os testes de novos medicamentos mais seguros.
Ao longo de sua carreira, Neher ganhou diversos prêmios – entre eles o Leibniz Award, em 1986, considerado o mais importante na área da ciência na Alemanha. O reconhecimento internacional veio em 1991, quando ele e Sakmann foram contemplados com o Nobel de Medicina.
Nessa época, Neher já havia abandonado os estudos sobre canais iônicos e vinha se dedicando ao tema que hoje o fascina: entender como ocorre a liberação de neurotransmissores e transmissão sináptica. Em sua avaliação, tal conhecimento é fundamental para compreender diversas doenças neurológicas e abrir caminho para uma possível cura.
Atualmente, Neher é pesquisador do Max Planck Institute for Biophysical Chemistry, em Göttingen, na Alemanha, onde coordena um grupo de pesquisa sobre biofísica de membrana.
De passagem por São Paulo – onde proferiu, nos dias 29 e 30 de janeiro, palestras durante a programação da exposição científica –, Neher concedeu uma entrevista à Agência FAPESP, na qual falou sobre as pesquisas do passado, do presente, sobre a importância da comunicação científica e sobre o que chama de “estilo de vida da ciência”.
Agência FAPESP – Quando o senhor se descobriu cientista?
Erwin Neher – Desde criança eu tinha muito interesse pela natureza e por tecnologia. Desmontava rádios e relógios e depois tentava montar novamente para entender como funcionavam. Mas foi pelos 16 ou 17 anos que fiquei fascinado com a ideia de que no corpo humano havia corrente elétrica, embora naquela época ainda não fosse possível medi-la. Comecei a me interessar pelas ideias relativamente novas dos britânicos Alan Hodgkin [1914-1988] e Andrew Huxley [1917-2012] sobre geração de potencial de ação [impulsos nervosos]. E também pela bioinformática, na época chamada de cibernética. No fim do ensino médio, quando chegou a hora de escolher um campo de estudo, eu estava dividido. Não sabia se começava pela Física ou pela Biologia para depois seguir para a Biofísica. De alguma forma, a decisão foi pela Física. Estava fascinado pela ideia de estudar fenômenos elétricos no interior das células.
Agência FAPESP – Começar pela Física foi a escolha acertada?
Neher – Bem, com isso eu deixei de aprender certos detalhes sobre a Biologia, principalmente sobre a neuroanatomia, e isso foi um obstáculo para entender certos artigos científicos que me interessavam. Por outro lado, tive um bom embasamento sobre as leis da física que regulam tudo o que ocorre dentro das células. A base em Física também me deu confiança para desenvolver modelos de estudo, me ajudou a antever quais tipos de simplificações poderiam ser feitas para estudar um certo fenômeno. Além disso, o conhecimento sobre equações diferenciais e integrais é fundamental para entender reações químicas e isso não aprendemos no currículo básico do ensino médio alemão.
Agência FAPESP – Mas o interesse em Biofísica teve alguma relação com o que o senhor aprendeu na escola?
Neher – Não. Na escola tínhamos apenas as disciplinas clássicas. O interesse em cibernética e em impulsos nervosos surgiu por causa de minhas leituras extraclasse.
Agência FAPESP – Se hoje fosse um jovem cientista escolheria o mesmo campo de estudo?
Neher – Acredito que sim. Biofísica é um tema muito bom. Penso que explicar os processos complexos da vida com base nas leis da Química e da Física é um dos grandes desafios que temos à frente. Talvez hoje eu estivesse mais inclinado a trabalhar, por meio da bioinformática, com essa enorme quantidade de informação genômica disponível. Um dos meus filhos está indo nessa direção.
Agência FAPESP – Como analisa o impacto do método patch-clamp mais de 30 anos após a primeira publicação na Nature?
Neher – O impacto foi muito além do que esperávamos na época. Assim que esse método altamente sensível de medir corrente elétrica na célula se tornou acessível, avançou o conhecimento em diversos aspectos. Em primeiro lugar, tornou-se possível entender a mecânica de funcionamento dos canais iônicos e os detalhes moleculares de como eles operam. O patch-clamp se tornou o método padrão para fazer eletrofisiologia com células pequenas, como as células de mamíferos. Antes, algo semelhante vinha sendo feito com as técnicas de microeletrodos [método voltage-clamp] – limitadas às células grandes encontradas em invertebrados. Meus primeiros trabalhos, ainda durante o doutorado, foram feitos com células de caracóis. Mas com o método patch-clamp, de repente, tornou-se possível fazer eletrofisiologia com tecido de biópsias de mamíferos e todos os tipos de cultura celular. Isso revolucionou a biologia. As pessoas perceberam que os canais iônicos não existiam apenas em células eletricamente excitáveis, como neurônios e células musculares ou neuroendócrinas. Com essa técnica, descobrimos que as células não excitáveis – a maioria em nosso organismo – também têm muitos canais iônicos, de muitos tipos diferentes, e estão envolvidos em diversas funções. Todas as funções dos sentidos são mediadas por canais iônicos, que transformam o estímulo físico, como a vibração da cóclea, em eletricidade. Todas as células do rim que regulam o transporte de fluidos, as células do sangue, os linfócitos, todas têm um certo tipo de canal iônico envolvido na regulação de seu funcionamento. Além de tudo isso, o método possibilitou o entendimento de um grande número de doenças congênitas causadas pelo mau funcionamento de canais iônicos.
Agência FAPESP – Os canais iônicos também se tornaram alvo de novos medicamentos?
Neher – Sim. Estudos posteriores mostraram que os canais iônicos são alvos prioritários para medicamentos, pois são grandes reguladores do funcionamento celular. Com apenas algumas moléculas é possível bloquear alguns pequenos canais e influenciar o funcionamento da célula. A pesquisa sobre canais iônicos se tornou um grande tópico na indústria farmacêutica, pois também ajudou a tornar os testes de novas drogas mais seguros. Muitas moléculas candidatas a se tornar medicamentos tinham efeitos colaterais graves porque bloqueavam determinados canais iônicos no coração. Hoje, o FDA [Food and Drug Administration, órgão que regulamenta o uso de medicamentos nos Estados Unidos] tornou esse tipo de teste obrigatório.
Agência FAPESP – Há exemplos de tratamentos desenvolvidos graças a esse conhecimento?
Neher – Um dos exemplos que me ocorre é o tratamento da diabetes neonatal. É uma doença congênita rara. Uma pesquisadora da University of Oxford descobriu que muitos casos são em razão do mau funcionamento de um certo canal iônico que opera no pâncreas e controla a liberação de insulina. Já havia uma droga disponível para tratar diabetes do tipo 2 que atua sobre esse canal e ela descobriu que, com a mesma terapia, era possível controlar o problema desses bebês. E há também o tratamento para dor crônica baseado no bloqueio de uma subforma específica de canal de sódio envolvida nas terminações nervosas.
Agência FAPESP – Há mais de 20 anos o senhor parou de estudar os canais iônicos e voltou-se para a neurociência. Qual é a questão que o fascina atualmente?
Neher – Tenho tentado entender como ocorre a liberação de neurotransmissores e a transmissão sináptica. Parece-me que, apesar de conhecermos muitos dos componentes das moléculas envolvidas no processo de liberação de neurotransmissores, ainda não entendemos exatamente como isso acontece. De que forma vesículas que contêm neurotransmissores se fundem com a membrana celular.
Agência FAPESP – Que tipo de avanço esse conhecimento poderá trazer?
Neher – Claro que o objetivo final é entender as doenças neurológicas. Muitas delas são baseadas no mau funcionamento das transmissões sinápticas. Para ter um sistema nervoso trabalhando de forma apropriada é preciso haver um balanço entre sinapses excitatórias e sinapses inibitórias. A transmissão sináptica tem plasticidade e sua intensidade está em constante mudança dependendo do fluxo de informação pelo sistema. Essa plasticidade ocorre em todas as escalas de tempo, podem ser milissegundos ou mais. Tudo isso requer uma enorme variedade de processos reguladores para que o sistema nervoso funcione adequadamente. Não podemos entender doenças como esquizofrenia, transtorno bipolar ou autismo sem conhecer o que ocorre no nível celular. Claro que não podemos garantir que o conhecimento em nível celular será o suficiente para achar uma cura para essas doenças, mas, por outro lado, achar uma cura sem ter esse conhecimento me parece impossível.
Agência FAPESP – É a primeira vez que o senhor visita o Brasil? O que conhece sobre o cenário da ciência brasileira?
Neher – Já estive outras duas vezes no país. A primeira foi em 2005, quando dei uma palestra a convite da Sociedade Brasileira de Bioquímica e Biologia Molecular. Em 2007, participei do simpósio inaugural do Instituto Internacional de Neurociências de Natal [Edmond e Lily Safra]. Mas não conheço bem o cenário científico brasileiro e não tive colaborações formais com pesquisadores daqui. Tenho a noção de que a ciência está se desenvolvendo rapidamente no país, particularmente em São Paulo, onde há bom suporte financeiro. Penso que o Brasil está em um bom caminho.
Agência FAPESP – Como está o cenário na Alemanha e na Europa com a crise econômica?
Neher – A maior parte da Europa tem alguma dificuldade, principalmente Espanha, Itália e – em menor grau – França. Mas a Alemanha tem se saído bem durante esse tempo, pois o país passou por reformas bastante severas no sistema social e no financiamento à pesquisa. Temos um bom suporte à pesquisa e a grande vantagem da economia alemã é ter uma indústria muito competitiva de carros e muitas indústrias de porte médio que fabricam equipamentos para fábricas. Durante esses anos da crise, houve uma demanda grande por esse tipo de equipamento pelos países do Bric [grupo formado por Brasil, Rússia, Índia e China ]. Isso nos coloca em uma boa posição e o governo – nos últimos cinco anos – manteve sua promessa de aumentar anualmente o financiamento à pesquisa. Podemos dizer que somos afortunados.
Agência FAPESP – O senhor já contou em entrevistas anteriores que conheceu sua mulher no laboratório e tiveram cinco filhos. Como foi possível conciliar carreira e família?
Neher – Éramos ambos pesquisadores do Max Planck. Minha mulher teve de desistir de sua carreira na ciência após o terceiro filho e não foi nada fácil para ela. Mas, recentemente, ela voltou a trabalhar com assuntos ligados à ciência em um instituto dedicado a oferecer educação científica no ensino médio. Nesse instituto, alunos podem ir sozinhos ou em turma realizar experimentos de alto nível. Aliás, ela esteve no Rio de Janeiro – durante o Fórum Mundial de Ciência 2013 – e deu uma palestra sobre educação científica.
Agência FAPESP – Já que o senhor mencionou o tema educação científica, acredita que o ensino e a divulgação científica são atividades que devem fazer parte da carreira de um cientista?
Neher – Claro que os cientistas devem fazer um esforço para explicar ao público como o dinheiro está sendo gasto. Também devem contribuir para recrutar jovens cientistas e torná-los interessados em sua pesquisa. Mas nem todo bom cientista é um bom comunicador; não podemos esperar que todos façam isso. Alguns são bons professores, outros apenas entediam sua audiência com detalhes sobre sua pesquisa. E isso não é bom. Por outro lado, na Alemanha, temos um jornalismo científico muito elaborado, com pessoas engajadas e treinadas para comunicar e fazer as coisas parecerem mais interessantes. Minha posição é: sim, é importante divulgar a ciência, mas sem tornar cansativo para o público e sem gastar todo o tempo do cientista com divulgação.
Agência FAPESP – Além da ciência, a que outras atividades o senhor dedica seu tempo?
Neher – De maneira geral, penso ser verdadeira a ideia de que, para um cientista, a ciência é ao mesmo tempo um hobby e uma profissão. Mas claro que você não pode se dedicar a ela o tempo todo. Tenho também interesses em economia, em artes, toco um pouco de piano e sou muito fascinado por temas ligados a energias renováveis. Como hobby, eu opero um moinho de água para geração de energia.
Agência FAPESP – Qual conselho daria aos jovens pesquisadores brasileiros?
Neher – Para um cientista, é realmente importante ser cativado por um problema e isso significa estar constantemente pensando a respeito desse assunto. É o que chamo de estilo de vida da ciência. Claro que é impossível fazer isso 24 horas por dia; é preciso dormir, interagir com a família e tudo o mais. Mas, pelo menos, sempre que estiver sozinho, nos momentos tranquilos, deve-se pensar sobre seu problema, avaliar os experimentos de seu laboratório em um outro contexto, comparar os resultados com sua hipótese e tentar buscar soluções de diferentes ângulos. O jovem pesquisador deve avaliar se tem essa curiosidade que o cativa. Em seguida, deve avaliar se o problema que o instiga é pelo menos importante o suficiente para lhe prover o sustento. Afinal, não se vive de ar. Uma vez que esses dois requisitos forem atendidos, deve verificar se tem as habilidades que o tornam capaz de alcançar seus objetivos.
Agência FAPESP – O que mudou após ganhar o Nobel?
Neher – Com o Nobel vêm muitas novas demandas para o tempo do cientista. Muitas pessoas pensam que o prêmio as habilita para falar sobre qualquer assunto. Claro que isso não é verdade. Ganhamos o Nobel por um conhecimento muito específico, por resolver problemas específicos. Os cientistas têm de aprender a lidar com essas novas demandas de forma que sobre tempo suficiente para sua pesquisa.